Saturday, May 01, 2004

Quinze anos

[Texto escrito em 2004, na ocasião da memória dos 10 anos de morte de Senna.]


"- Esta é uma notícia que nunca gostaríamos de dar. Morreu Ayrton Senna da Silva."


Minha infância acabou às 13h18 do dia 1º de maio de 1994. Foi Roberto Cabrini quem decretou, ao dizer ao vivo essas palavras acima, que ainda ressoam na cabeça de muita gente.

Na véspera, fui com meu pai ao aeroporto de Cumbica levar meu tio, que iria pra Curitiba. Não vi o treino oficial. Do próprio aeroporto, liguei para o seu Paulo, meu padrinho, com quem me encontraria depois.

- Quem ficou em primeiro?
- O Senna! Mas morreu um hoje!
- Como assim? Quem morreu?
- Um austríaco, esqueci o nome.


Por um segundo tentei lembrar o nome de todos os austríacos do grid e só recordei Gerhard Berger, da Ferrari, e Karl Wendlinger, da Sauber. Nunca lembraria de Roland Ratzemberger, piloto da minúscula equipe Simtek, que só tinha conseguido classificação na segunda corrida da temporada: o malfadado GP do Pacífico. Gelado pela possibilidade de ter sido Berger o morto [é um dos meus pilotos preferidos até hoje] cheguei na casa do seu Paulo e voei para a televisão. Ainda não havia começado nenhum noticiário de esporte. Acreditava ter sido o Wendlinger.

- Você não lembra mesmo? Era Berger ou Wendlinger?
- Não... Não lembro mesmo.


Tentei lembrar mais nomes em vão até que começou o Globo Esporte e apareceram as imagens do acidente. Ratzemberger. Uma criança de 11 anos não costuma alimentar muita simpatia por pilotos desconhecidos [que não sejam os folclóricos japoneses] e não tive mais do que um fio de espanto ao ver a batida. Lamentei apenas, e achei que tivesse sido falha de estrutura do carro, era um time iniciante, aquela coisa toda. Na minha inocência, achei que era toda a merda possível de acontecer num fim de semana. Rubens Barrichello ferido na sexta, Ratzemberger morto no sábado. Nada poderia mais dar errado.

Seu Paulo e dona Cida voltaram com a gente para Taubaté. Eles estavam vendo TV com a minha avó Ilia em 1976, quando aconteceu aquele acidente horrível que desfigurou Niki Lauda, em Nurburgring. Ao vivo. E acompanhariam a corrida comigo.

Domingo, 9h da manhã. Faltei ao catecismo para ver a corrida. Não era Jesus Cristo a quem eu queria reverenciar naquela manhã. A televisão mostra o rosto de Ayrton Senna da Silva pela útlima vez ao mundo, ajeitando sua bala-clava. Nunca Senna tirara seu capacete no grid. Vamos para os comerciais. Voltamos dos comerciais. Volta de apresentação. Largada. Pedro Lamy bate em J.J. Lehto, joga destroços nas arquibancadas e fere nove espectadores. O clima da corrida já estava pesado por tudo o que havia acontecido mas, particularmente ali, começou uma certa tensão no ar. Parece meio forçado, dito isso hoje, mas o clima ficou pesado, como se algo pior estivesse para acontecer; como se o perigo ainda não tivesse passado.

Volta seis, o safety car sai da pista. Senna na frente, Schumacher bem próximo. Volta sete. A TV corta para a câmera on-board de Schumacher na Tamburello. No meio da curva, a Williams de Senna dá uma guinada à direita e bate violentamente. Galvão:

- Senna bateu forte!

"Trinta pontos!", foi a primeira coisa que pensei. Schumacher vencera as duas primeiras corridas e, com a regularidade da Benneton, ganharia em Ímola também. Já Ayrton tinha três abandonos em três corridas. Pra Senna reduzir aquela diferença, seria muito difícil. Pensei nisso tudo até me tocar que Senna não havia saído do carro. Mas ele iria sair uma hora. Devia ter desmaiado, coisa da desaceleração e tal. É normal. O Christian Fittipaldi desmaiou quando bateu com a Minardi daquela vez. O Barichello também. Ele iria acordar, sair do carro amparado pro médicos, ir pro ambulatório e ficar uns dias de molho. Como todos os outros.

Ímola, 1989: Gerhard Berger em sua Ferrari, na segunda volta do GP, bate violentamente na Tamburello. O carro pega fogo, numa das cenas mais assustadoras da história do automobilismo. Imediatamente socorrido, Berger foi levado às pressas pela ambulância ao ambulatório do circuito. Os tifosi, atônitos, aguardavam informações de um de seus heróis [Monza, 1988, procurem no YouTube]. Minutos depois, pelas caixas de som, foi anunciado que Berger passava bem. O que se ouviu foi uma comemoração impressionante, como - desculpem pelo menos este cliché - um gol da Itália em final de Copa do Mundo. Achei que aconteceria o mesmo com Ayrton.

Nada fazia sentido. O carro não estava tão destruído quanto o de Ratzemberger ["Carros de ponta são mais seguros."], todo aquele procedimento médico parecia desnecessário ["Eu vi o cara mexendo a cabeça, merda!"], tantos outros haviam sofrido acidentes piores em impacto e saíram andando. Era o Senna, porra, era um super-humano fisicamente. Não era pra ser daquele jeito. Desaceleração não faz aquilo. Pra quê a porra do helicóptero? O que é aquele sangue no chão? Por que demoraram tanto para começar o socorro? O QUE ERA AQUILO, AFINAL?

Começa a corrida novamente. Schumacher em primeiro, irredutivelmente até o fim. Antes, o pneu de Pierluigi Martini escapa após um pit stop e atinge um mecânico da Minardi, que vai para o hospital. Pelo amor de deus, terminem essa corrida e voltem pra casa. Voltei a pensar nos trinta pontos. Senna não tinha o melhor carro, e agora estava machucado. Traumatismo craniano, "estado muito grave". Então, horas mais tarde, veio o plantão da Globo e o Cabrini. Ayrton Senna da Silva, 34 anos, morto. A situação era a mais irreal com a qual eu já havia tomado contato. Na verdade, eu é que não queria acreditar. A ficha simplesmente não caía.

A Williams FW-16 nº2 guinou para a direita em plena Tamburello. Não foi em linha reta, nem saiu de traseira, não bateu no muro de dentro. O carro foi pra DIREITA, porra. Damon Hill disse anos depois que Senna errou. Gostaria que ele explicasse pra mim qual erro foi esse. Só se Ayrton tivesse virado o volante pro lado errado, porra. Como pode um Formula 1 sair de frente naquela situação por "erro" do piloto?

Acompanhei a Formula 1 na época de uma segurança ilusória. Oito anos sem fatalidades entre pilotos. Doze anos sem morte em GPs. Martin Donelly quase morreu numa Lotus em 1990, "mas Lotus são carros assassinos por natureza, desde Colin Chapman". Não importa. Como bem disse Edgard Mello Filho nas transmissões da extinta TV Manchete: "Será que era necessário que, pra alguém lembrar da segurança, a Fórmula 1 precisasse ferir quatro e matar dois?". Ninguém levou em conta o acidente de Jean Alesi na pré-temporada, que o tirou das primieras corridas. Ninguém levou em conta a batida entre Jos Verstappen, Martin Brundle e Eddie Irvine no Brasil. Quinze dias depois, a Formula 1 quase assassinaria Karl Wendlinger, o austríaco a quem eu inicialmente matara no sábado em Ímola, nos treinos para o GP de Mônaco. Karl ficou três meses em coma e nunca mais voltou a ser o bom piloto que era.

No Fantástico, aquela noite, milhares de teorias sobre o que havia acontecido. Médicos, engenheiros pilotos. Nelson Piquet, na única vez que o vi medindo as palavras, disse que "era uma batida típica de problema na suspensão". Queria adivinhar o ovo de Colombo, já que o Williams de Senna tinha problemas crônicos de resistência na então "revolucionária" suspensão mecânica traseira. Mas parecia não ser a pretensão de Piquet querer saber mais do que todos alí, como era de costume. Devia estar se lembrando do seu próprio acidente em Indianápolis, 1992, onde - talvez refletisse - passou muito mais perto da morte do que imaginara.

Fui dormir aquela noite ainda sem ter dimensão do que tinha acontecido. Quando meses depois foi revelado que ele morreu com uma lasca de barra de suspensão atravessada na cabeça - que entrou por uma imensa infelicidade na têmpora de Ayrton - aí sim tive vontade de chorar de verdade pela primeira vez. Mas chorar de raiva. A fenda no capacete era mínima. Senna não foi atirado do carro como Gilles Villeneuve, não foi morto por infecção hospitalar como Ronnie Peterson, não morreu queimado como Roger Williamson e Lorenzo Bandini, não foi degolado por uma lâmina de guard-rail como Francois Cevert e Helmut Könnigg. Senna foi morto por uma lasca de braço de suspensão. Incrivelmente cruel.

Segunda-feira. Trinta e oito fãs do Senna surgem na minha sala de aula. O curioso é que até então nunca ninguém da minha turma da quinta série tinha se interessado em conversar comigo sobre automobilismo. As meninas choravam como se a mãe delas é quem tivesse morrido. Imploravam pelos pôsteres que saíram nos jornais daquela semana. Não deviam saber o nome de três pilotos de cor. Nunca tinham visto uma corrida de automóvel do início ao fim. E choravam. Eu, que comprava revistas americanas sobre corridas sem saber nada de inglês, tentava prestar atenção na porra da aula.

Foi a primeira vez que eu percebi como estava rodeado por gente idiota no mundo. Era o MEU ÍDOLO, porra, EU é quem deveria estar chorando feito uma bicha. EU levantava todo santo domingo às 8 horas, tomava café e esperava religiosamente até às 9 da manhã para ver mais uma vez aquele bando de idiotas arriscando a vida no ato de ludismo mais imbecil possível. EU decorava o nome de cada retardatário que ele ultrapassava, incluindo a equipe e o motor que usava. E eu não estava chorando, porra... Talvez porque tenha acontecido algo pior comigo. Com a morte de Senna, perdi meu bálsamo. Antes, o mundo poderia cair ao meu redor; se Ayrton Senna derrotasse Alain Prost naquela manhã de domingo, eu estaria feliz. Na mesma época, com "ajuda" da escola, descobri que era disléxico, depressivo e burro. Nunca procurei ajuda médica porque isso era vergonhoso, demonstrava fraqueza. Eu precisava de uma muleta emocional permanente pra viver. Até então essa muleta atendia por Ayrton Senna da Silva.

Todos esperavam que Senna quebrasse os recordes de Juan Manuel Fangio. Até o próprio argentino queria assim, pois dizia que aqueles números eram "um fardo em suas costas" e via Senna como o único a poder tirá-lo. Talvez conseguisse, talvez não. Fangio faleceu com seu fardo em 1995. Não viveu para presenciar os 6 títulos e atuais 74 vitórias de Michael Schumacher, o herdeiro de uma Formula 1 sem grandes pilotos. Engraçado perceber que o alemão entrou numa Formula 1 que tinha nomes do quilate de Piquet, Prost, Mansell, Berger, entre outros, talvez a maior safra de campeões da história da categoria. Hoje, temos Raikkönen e Barrichello que, no máximo, são bons [particularmente desisti de Montoya - e Jenson Button é um pouquinho melhor do que Damon Hill, só]. Schumacher foi o único que restou dos grandes, correndo contra três ou quatro razoáveis que dirigem carros idem e um restante de juniores. Schumacher não merecia viver da incompetência alheia, como vive. Tem talento de sobra para encarar qualquer um daquela lista no mesmo nível, porém foi obrigado a disputar títulos com Damon Hill e David Coulthard. Quis o destino assim. Recordes construídos em cima de incompetentes.

Depois de Senna, torci sim por Barrichello, e muito, mas sempre soube de suas limitações tanto como piloto quanto com seu equipamento. O que fizeram com esse cara é absolutamente normal num país de carência emocional tão forte quanto o Brasil. Queriam que ele tivesse performances memoráveis, brigas emocionantes, jogasse gente pra fora, voasse no molhado, etc. Pelo menos em uma corria ele lembrou o campeão: em Mônaco, 1997, sob uma chuva descomunal, completou sua única corrida naquele ano com a Stewart-bomba em segundo lugar, atrás de Schumacher. Assim como Senna fizera em 1984, com um carro mediano, chegando apenas com Prost à frente. Até hoje tenho clara na minha mente a imagem de Senna abandonando o GP de Mônaco de 1988 - bateu numa curva besta após impor 50 segundos de vantagem sobre Prost. Assim que a TV mostrou a imagem dele saindo do carro, minha mãe levantou do sofá e gritou "BURRO!". Logo o Senna, burro. É do que chamam o Barrichello até hoje, só que infelizmente ele não ganhou três títulos mundiais. Talvez as meninas choronas da quinta série possam falar mais sobre isso.

O problema todo é que Senna acabou virando um mito espiritual demais. Banalizaram a sua arte, acham que qualquer coisa que ele fez foi obra do divino. Hoje, todos são fãs do Senna, assim como também foram fãs do Gustavo Kuerten há alguns anos. Amanhã, quando toda essa celebração passar, ninguém mais vai lembrar da volta mágica de Donington Park em 1993, repetida à exaustão nos últimos dias. Ninguém mais vai lembrar que o único recorde que Schumacher não quebrou ainda é o recorde de poles. Ninguém mais vai se lembrar de coisa alguma, de dados levantados para serem vomitados em conversas de bar seguidos de frases do tipo "o cara era foda mesmo". Senna não era deus, nunca foi e nunca será. Por que ninguém aí lembrou que Senna agredia fisicamente qualquer Schumacher ou Irvine que o bloqueasse na pista como retardatário? Por que ninguém lembrou que ele também bloqueou companheiros de equipe por onde passou, assim como Piquet fez com ele antes? Ayrton Senna da Silva, o segundo mais importante esportista brasileiro de todos os tempos, não era deus. Era o meu ídolo, sim, mas não era deus. Era justamente o meu ídolo por ser humano.

Pensei em várias formas de terminar esse texto desconexo e nenhuma ficou legal. Na verdade, a melhor forma seria mostrar uma edição de melhores momentos com os créditos subindo, que foi como quase todos os programas esportivos da semana encerraram suas edições. Eu pegaria apenas uma corrida para editar: GP do Brasil de 1993. Davi x Golias, Senna e sua McLaren "semi-mecânica", 9 km/h mals lenta que as Williams Pentium 4 de Prost e Hill. A ultrapassagem sobre Hill no Laranjinha é alvo de estudo até hoje - de slick no molhado e fora do traçado que já formava trilho. Ele dirigia como um insano, sem nada a perder. Ninguém seria capaz de alcançá-lo aquele dia. Para mim, a maior vitória de todas. O final épico com a invasão de pista. Fantástico.

Obrigado, Ayrton. Por essas e outras pequenas alegrias na minha vida.

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